26 de março de 2020

Carta bem fechada


Tempos houve em que as cartas eram como cofres, com as nossas intimidades fechadas e inacessíveis a olhares terceiros. É certo que dentro da fragilidade de um envelope de papel, mas tinha-se como adquirida essa segurança e privacidade. Confiava-se no carteiro como no padre na confissão ou no médico no consultório e a carta lá seguia, fosse perfumada para a namorada com promessas de amores, para familiares na labuta no estrangeiro, para filhos ou maridos na tropa, em paz ou guerra, para votos de feliz Páscoa e feliz Natal com o postal da praxe com coelhinhos e paisagens nevadas.

Mas nisto de escrever cartas e mandar correspondência, em suma a forma de comunicar, as coisas deram uma volta enorme e o que vai dando são os telemóveis, a internet e com ela os emails, whatsapps, redes sociais e outras que tais, mesmo que ainda continuem a circular cartas, mas na generalidade quase apenas com assuntos cinzentos, institucionais, de facturas de serviços e bens, dos bancos, dos seguros, etc.

Apesar disso, apesar de já quase ninguém usar o envio de carta no sentido clássico, e uma grande parte nem as saberá escrever, já não como no antigamente em que a vizinha iletrada pedia à vizinha com a quarta classe que lhe escrevesse uma carta para o marido algures no ultramar, mas por um analfabetismo disfuncional, há quem se arvore em escritor e mensageiro simultaneamente, e por estes dias, em que o mundo se debate com um ataque alienígena, o que não têm faltado são cartas abertas: ao Governo, ao Primeiro Ministro, ao presidente Marcelo, aos médicos, aos bombeiros, aos homens da recolha de lixos, etc, etc. É um fartote de cartas abertas, de envelopes sem selo, descoladas, escancarados com intimidades que se querem públicas e propagadas aos quatro-ventos. Umas de incentivo, mas muitas de crítica, porque nestas coisas somos todos bons treinadores de bancada. Devíamos ser todos professores porque somos manifestamente bons a dar lições.

Tempos estes em que já começa a fazer falta algum silêncio, alguma quietude, num desejo como em outros tempos se esperava pela Páscoa para saborear amêndoas ou pelo Natal para comer aletria.