Qualquer construção, desde a mais singela à mais sumptuosa, para perdurar no tempo tem que beneficiar de obras regulares, que podem ser apenas de conservação face aos elementos da natureza, como aplicação de pinturas e reparação de telhados, mas também de requalificação de modo a ampliar espaços ou reformular elementos e suas funções.
Ora se numa mera habitação é imperiosa essa necessidade de obras, tanto mais o é numa construção com carácter comunitário e simbólico como acontece com um edifício de igreja ou capela, ou mesmo de monumentos de carácter local ou nacional, entre outros.
Neste contexto, é pois natural que a nossa igreja matriz de S. Mamede de Guisande tenha ao longo dos tempos, mais recuados ou mais recentes, sido alvo de diversas obras, umas mais ligeiras outras mais profundas, como as que aconteceram entre os anos de 1923 a 1929 e que neste artigo procuramos falar e trazer a público alguns interessantes apontamentos.
Desde logo, o que é singelo e invulgar, a propósito do processo dessas obras, designadas de "reparações", o então pároco, Pe. Rodrigo Milheiro, no final mandou imprimir um livrinho com 20 páginas, datado de Janeiro de 1930, onde para além da introdução e justificação das obras, que abaixo transcrevemos, apresenta a descrição das diferentes tarefas e das respectivas contas. Nomeia ainda as pessoas que contribuíram e as respectivas ofertas.
Este impresso na ocasião foi oferecido a algumas famílias e existe igualmente no acervo dos papéis e documentos da paróquia, que de algum modo pode representar o arquivo paroquial, sendo que este na realidade não existe como tal, nem organiado nem em local digno e adequado à consulta e preservação. Certamente um trabalho que importará fazer.
No fundamental, de referir que o ponto de partida para a realização das reparações prendeu-se com o facto de na altura o corpo da nave da igreja ter sido dado como em eminente ruína já que as paredes exteriores apresentavam um desaprumo. De resto, situação que ainda hoje se verifica, sobretudo na parede da fachada sul (voltada ao cemitério). Há quem refira que este desaprumo vem desde o famoso terramoto de 1755 (que destruíu Lisboa e que por cá também se fez sentir) enquanto que outros, como o autor do atrás referido impresso, atribui o defeito à armação da cobertura da igreja. Resulta, pois, dessas obras, a aplicação dos actuais varões de ferro transversais que ligam ambas as paredes e que são visíveis do interior do edifício.
Interessante todo este contexto e fundamento.
É indicado que para angariação de fundos para a obra, se realizaram dois bazares (a que hoje chamámos de feirinhas) no dia 28 de Dezembro de 1924, um na Parte-de-Cima da freguesia e outro na Parte-de-Baixo, que renderam ambos 2.430$00.
Em resumo e em balanço, a totalidade das obras realizadas nesse período de tempo custaram 25.146$55 (escudos) e para elas apurou-se uma receita de 23.488$17, por isso registando-se um saldo negativo de 1.658$38. Para ajudar a cobrir o saldo foi realizado um empréstimo de 1.215$00, ficando por isso um remanescente negativo de 443$38. O empréstimo foi concedido pelo Pe. Dr. António Ferreira Pinto, sendo 215$00 para pratear os padrões e mais um conto (1.000$00) para liquidar as contas com o sineiro.
Os 443$38 foram pagos com 100$00 pelo próprio pároco, ainda com dinheiros de juros, esmolas, promessas e sobras de confrarias. Diz ainda o pároco que ele próprio pagou 300$00 como parte do empréstimo ao Dr. Ferreira Pinto.
É dito ainda que "...o falecido Snr. Custódio António de Pinho (nota: da Casa da Quintão, no Outeiro) fez à sua custa a porte principal e o guarda-vento onde gastou cerca de oito contos. Deus Nosso Senhor dê paz à sua alma. O Snr. Manuel A. Guedes mandou levantar a tôrre gastando cêrca de seiscentos escudos.
As casas principais da freguesia deram os pinheiros precisos para as obras a saber : Custódio A. de Pinho, três ; António dos Reis Oliveira, dois; Raimundinho Loureiro, dois ; Manuel da Costa Moreira, dois ; Manuel Henriques Correia, um; Rufino Ferreira Pinto e irmãos, dois e Manuel António dos Santos, um."
O pároco agradeceu a todos "...o terem concorrido tão generosamente para a reparação da Igreja. Deus Nosso Senhor é que há-de pagar a todos o sacrifício que fizeram para dar as suas esmolas. Todos, pobres e ricos, deram as suas esmolas e quando dos bazares trouxeram os sous presentes, na medida das suas posses. Os ricos continuaram a ser ricos e os pobres não pioraram na sua pobreza. Bem diz a S. Escritura — quem dá a Deus, não dá, empresta".
Procurou na execução dos trabalhos "... ser o mais económico e fazer obra sólida e o melhor possível. Nem tudo ficaria bem e ao agrado, mas não o fiz por maldade ou falta de cuidado. Errar é próprio dos homens. O povo de Guisande tem mostrado sempre ser crente e brioso, orgulhando-se ao ver a sua Igreja limpa, embora modesta. Eu da minha parte também estou satisfeito porque todas as vezes que bati à porta dos paroquianos pedindo uma esmola para a Casa de Deus não me foi recusada.
O Ex." Snr. Dr. F. Pinto comprou para a igreja: 1 paramento verde, um relicário de prata, 1 estola preta, 1 paramento branco (usado), 1 missal, 1 cadeira paroquial, pagou a escritura, ciza e mais despesas com a doação da residência, mandou fazer uma varanda em cimento, comprou 1 bomba para o poço, mandou caiar a residência em 1923 e pô-la no seguro pagando o 1.° ano, comprou um pedaço de terreno para alargar o terreno em frente à residência por um conto, recebendo do povo 55-mente 753$50 ; mandou encarnar a imagem de Nossa Senhora do Rosário e outra da Capela, etc. "
Ainda no mesmo impresso, é dada conta que em Dezembro de 1929 fez-se um pequeno bazar para angariar verbas para compor a Capela do Viso, tendo sido apurada a quantia de 835$00. veja-se na folha abaixo.
Em resumo, apontamentos com muito interesse e certamente, pela data a que se reportam, já do esquecimento da totalidade da nossa população.
Daremos continuidade a estes apontamentos relacionados com as obras tanto na igreja, como na capela e na residência.
Quanto ao contexto e justificação das obras, cujo texto consta do já referido impresso, é particularmente interessante e para além de tudo relata-nos pormenores e procedimentos muito particulares.
Segue-se, então, a transcrição do texto, com uma outra actualização de vocabulário e acentuação bem como algumas notas explicativas para melhor leitura e interpretação.
INTRODUÇÃO, CONTEXTO E JUSTIFICAÇÃO DAS OBRAS DE REPARAÇÃO
A Igreja Paroquial da freguesia de São Mamede de Guisande já existia em 1686, como se vê por uma determinação do Ex.mo e Rev.mo Snr. Bispo D. João de Sousa que, estando de visita à freguesia de São Jorge, no dia 16 de Julho de 1686, aí chamou o Rev.do Pároco de Guisando com seus fregueses para lhes administrar a Sagrada Comunhão e Crisma; diz : ... Mandando visitar esta Igreja (S. Mamede de Guisande) por nos constar que a capela-mór está arruinada, ser mui pequena, e não ter sacristia, mandamos que o abade faça de novo a capela-mór mais larga e comprida do que é a actual, e com sacristia para que com maior decência se possam celebrar os ofícios divinos ; e estas obras se façam dentro de ano e meio com cominação (nota: ameaçar com pena ou castigo) de que faltando o Rev.do Abade a acabação deste capítulo será condenado em 20$00 para o seu Meirinho (nota: magistrado encarregado de aplicar a Justiça e fiscalizar a aplicação da justiça).
Em 28 de Setembro de 1687 foi a freguesia visitada pelo Dr. João da Fonseca; este deixou escrito « ... como o Rev.do Abade se tem havido com descuido em não ter feito preparo algum para as obras ... mando sob pena de Excomunhão, Maior, ipso facto ... as executo no referido prazo de tempo». Em 6 de Maio de 1689, visitada a freguesia pelo Dr. Gaspar Pacheco foi por este resolvida uma pendência entre o pároco e o mestre de obras, construtor da capela-mór, sobre se o arco-cruzeiro tinha ou não entrado no contrato. O visitador deliberou fosse construído o arco-cruzeiro à custa de ambas as partes, no que todos concordaram.
O visitador obrigou o empreiteiro a ter a obra acabada até ao dia de S. João p. f. Em 2 de Maio de 1690 foi visitada a freguesia por João de Almeida Ribeiro que mandou pôr duas vidraças nas friestas da capela-mór.
Visitada em 19 de Dezembro de 1694 pelo Dr. Francisco Monteiro Pereira, diz : «Fui informado que o Rev.do Abade defunto (P.e João Sequeira de Sousa) dos ornamentos desta Igreja vendeu, para fora, uma vestimenta e com outra se enterrou, o que não podia fazer... como também os gastos que (o pároco actual, Valério R. da Luz) fez em acabar a capela-mór e a sacristia, o que tudo devia ser à custa dos herdeiros do defunto, como deverá cobrar-se.»
Daqui se conclui que a capela-mór e a sacristia foram principiadas em 1620 e acabadas em 1690 a 1694. O corpo da Igreja já existia nesta altura, mas é desconhecida a data da sua construção. E construído a pedra e cal, com janelas e portas de cantaria lavrada, ao passo que a Capela-Mór, sem cantaria nas janelas, tem na das portas o que há de mais ordinário, sendo as paredes construídas a pedra e barro.
A data de 1737, gravada no arco-cruzeiro, é muito posterior à construção da Igreja. Essa data deve referir-se às pinturas da Igreja. O Rev." Padre Carvalho (nota: Pe. Manuel Carvalho, fundador da Confraria de Nossa Senhora do Rosário) que tomou posse desta freguesia em 10 de Março de 1710, já encontrou a Igreja construída; porém, a torre data de 1764. O altar-mór também atesta a veracidade destas transcrições, pois tem um remate na parte superior em talha Luís XV, quando no seu todo é renascença.
Aos lados do altar-mór há duas peças de talha estilo renascença como o altar, mas de proporções muito maiores, prova de que não foi obra do mesmo artista.
As paredes do corpo da Igreja estão desaprumadas para fora, cerca de 0,15 m. Este desaprumo é proveniente de a Igreja não ter cume nem terças.
A Igreja compõe-se de: corpo da Igreja com 17,00 m de comprimento por 7,00 m de largura, a capela-mór com 3,00 X 5,00 m, o plano do altar-mór com 2,50 X 5,00 m e duas sacristias. Tem quatro altares em talha.
A Igreja paroquial da freguesia de S. Mamede de Guisande foi fechada ao culto nos fins do ano de 1923, a pedido do pároco desta freguesia (nota: então o Pe. Abel Alves de Pinho), por ordem do Ex.mo Prelado diocesano, em virtude das informações que lhe deram o pároco e peritos, afirmando que estava a ameaçar ruína. Foi mudado então o SS. Sacramento para a Capela de Vizo e aí se começaram a celebrar todos os actos do culto.
Passados alguns dias, o pároco cansado de ir diariamente à Capela, pediu ao Ex." Prelado para celebrar à semana no altar-Mór, ficando o povo do arco-cruzeiro para cima, servindo-se pela porta da sacristia. O Ex." Prelado concordou, e o pároco principiou a celebrar no altar-Mór; servia-se do confessionário que estava debaixo do púlpito e administrava o baptismo no seu devido lugar, indo o sobrinho ligeiro (não fosse a Igreja caír) abrir a porta principal para entrar o povo, e o pároco paramentado seguia pelo adro e entrava também pela parte principal.
O Rev..do Pároco exortava o povo a que compusesse a Igreja e para esse fim nomeou uma comissão de paroquianos. Principiou a receber donativos para as reparações e no dia 20 de Outubro de 1923 (véspera da sua despedida) entregou ao Snr. Moreira, nomeado tesoureiro, a quantia de 2.528$30. Nesta altura tomei posse da paroquialidade desta freguesia de Guisande para a qual fui nomeado (nota: Pe. Rodrigo Milheiro).
É costume fazer-se durante todo o mês de Novembro, de madrugada, o exercício do mês das Almas e de N.ª S.ª do Rosário e como na Capela-Mór não cabiam homens e mulheres e não podendo além disse estar todos misturados, falei a este respeito com o Rev.do Vigário da Vara que me deu vários esclarecimentos e instruções sobre o caso.
Examinei, na companhia do pessoas competentes, a construção da Igreja e vimos se realmente estava ou não a ameaçar ruína. Feito o exame, chegamos a conclusão de que foi bem construída, empregaram materiais sólidos e madeiramentos resistentes; mas talvez porque as madeiras não estivessem bem secas, celaram (nota:contrairam) muito e obrigaram as paredes a desaprumar, devendo também influir muito neste grande celamento das madeiras cerca de três toneladas de caliça (nota: mistura de pedra e barro) existente entre o fôrro e o guarda pó.
As paredes da Igreja têm de espessura 0,70 m ; desaprumando 0,15 m, ficando ainda em prumo 0,55 m. Ora uma parede com 5,50 m de altura e 0,55 m de espessura, sendo bem construída não se pode dizer esteja a ameaçar ruína. Os peritos que o Snr. Abade chamou bem o compreenderam, mas para o não desgostar assinaram de cruz, e o pároco tomou esta resolução para ver se conseguia que o povo desse os donativos para as reparações.
Abrir a Igreja era uma desconsideração para o meu antecessor (e não fica bem que o novo pároco altere logo de entrada quanto seu antecessor fez). Além disso o meu antecessor paraquiou a freguesia durante 16 anos sempre com muito zêlo, piedade e fervor. Oxalá eu conserve ao menos o que dele recebi.
Fiz então desta maneira: dividi a Igreja, da parte traversa do norte em direcção ao arco do altar de N.a S.ª do Rosário, e ordenei que as mulheres entrassem pela parte travessa e não passassem para baixo da divisão nem para cima do arco-cruzeiro, e os homens entrassem pela sacristia para ficarem na Capela-Mór. Assim principiei a exercer todos os actos do culto na Igreja, indo à Capela semente aos domingos, celebrar a primeira Missa, a da Capelania.
A 28 de Janeiro de 1924 principiaram os pedreiros a pear o corpo da Igreja com vigas de ferro, e no dia 1 de Fevereiro, terminadas as peações, autorizou o Ex.mo Prelado a abrir a Igreja ao culto.
Na terça-feira da Páscoa, 22 de Abril, principiaram os carpinteiros e os trolhas a descobrir a Igreja. Antes disto tinha-se levantado um altar na sacristia sul, onde foram colocadas as imagens e o SS. Sacramento, celebrando nele Missa à semana. Aos domingos celebrava-se no altar-Mór, sendo convenientemente preparada a Igreja no sábado à tarde, depois de se retirarem os operários.
A Igreja foi coberta com telha francesa, soalhada, remendado e pintado o fôrro, forrado de novo o côro, concertadas a grade e a cimalha do côro ; foi feita uma porta principal e outra travessa, remendadas e vestidas de novo três portas, levantada a torre de sete metros, picada a cal da torre e argamassada de novo, vestido o frontispício da Igreja a massa de areia, concertada a cal das paredes da Igreja, lavada e caiada;
Foram feitos novos beirais e cimalhas (nota: parte superior da cornija onde assenta o beiral da cobertura), concertados três altares e lavados ; foram dadas três mãos de cola, feitos quatro estrados novos, rasgadas as janelas da Igreja, levando grades e vidros novos, foi feito um guarda-vento, composta a grade do arco cruzeiro e aumentada foram feitos seis confessionários novos, comprada uma Custódia nova, um sino, prateados dois padrões e uma vara de juiz;
Foram comprados dois panos : um para o gavetão da sacristia e outro para o harmónio ; um tapete para o Altar-Mór ; foi feita uma dúzia de bancos grandes e seis pequenos ; foram reparados o gazómetro, as lâmpadas e as credências e compradas duas pedras de mármore e uma cadeira paroquial e ultimamente foram dourados três altares e o púlpito.
Tem a freguesia de Guisande uma boa residência construída em 1907, e uma espaçosa casa para reuniões da Junta, mordomos e confrarias, construída em 1909.
O cemitério é amplo e data de 1910. Todas estas construções estão em volta do adro e dão um belo aspecto ao local.
Os paroquianos, voluntariamente, contribuíram sempre para estas obras e podem ter justo orgulho das suas iniciativas e realizações.
Pe. Rodrigo Milheiro - Janeiro de 1930
- Datas relacionadas a obras:
1703, 03 março - contrato de Manuel da Fonseca para a obra de dois retábulos; 1712 - data gravada na pia baptismal; 1737 - data pintada no arco cruzeiro; 1764 - data da torre sineira, primeira construção; 1933 / 1934 - demolição, reconstrução e ampliação da capela-mor.