Foi já há uns valentes anos. Quantos, não sei ao certo, porque isto de calcular tempo passado, a partir dos 40 perde-se a noção porque um ano parece ter metade.
O Ramiro, o picheleiro, tinha um grupo de malta já perra dos ossos para as coisas do pontapé na bola, uma mistura de veteranos e reformados, mas que facilmente se vendia por umas trainadas que metessem cabidelas ou rojões à minhota, e de quando em vez, lá combinava um jogo de futebol com outra qualquer equipa que padecesse mais ou menos dos mesmos males, da velhice, dos ossos e da paixão pela bola.
Assim, de quando em vez, quase sempre ao Sábado à tarde, pegava na cana e no isco da saudade de quem já teve melhores dias e dando a volta pelo Vale, Louredo e aqui em Guisande, lá pescava um grupo suficiente de carapaus de corrida para formar uma equipa e mais alguns suplentes, porque isto de jogar sem treinos e com as pernas já cansadas obrigava a um plantel extenso.
Em Guisande o Ramiro pescava o Jorge Ferreira, o António Ribeiro, velhas glórias do Guisande F.C. e creio que o Álvaro sapateiro. Não sei porque carga de água, porque nem meti cunha, também fui pescado duas ou três vezes, quase sempre para jogar a médio ou a defesa esquerdo, talvez porque mesmo sendo destro, acertava bem como o canhoto. E então lá ía com o grupo, não porque me entusiasmasse o jogo em si, mas sobretudo pelo convívio, pelo banho e pelo jantar depois da jogatana.
Lembro-me de uma vez em que fomos para os lados de Amarante, não sei se de Verão ou Inverno, mas deveria ser Inverno porque choveu pegado durante o jogo e dos pés à cabeça era um frio gélido e pele de galinha. O equipamento, de manga curta e calçõeszinhos brilhantes à anos 80, pouco ajudava a escapar daquele gelo e o pelado encharcado fazia lembrar um lagar. A bola, essa tinha o peso da cabeça do Zé Grande, bom defesa, e quando vinha lá do ar a cair como um míssil ninguém lhe chegava a cabeça. Só mesmo de capacete.
Para além do frio gélido, do terreno encharcado e a malta, de um lado e outro, a chutar para a frente quase como num jogo de râguebi, pouco mais me lembro, mas há uma coisa que jamais esqueço: Jogando a defesa esquerdo, estava na frente numa jogada de ataque quando a bola veio-me ter aos pés. Posicionei-me, apontei, e numa espécie de canto curto ou cruzamento longo, peguei um valente biqueiro na bola ensopada e ela sobrevoou toda a malta, defesas e atacantes e foi-se encaixar dentro da baliza no ângulo superior direito. Golo! Um bonito golo! Merecia repetição em slow motion!
Já não me recordo do resultado final. Se calhar ganhamos, ou talvez não, mas isso pouco importa, pois afinal o jogo valeu por aquele golo marcado da esquerda pelo pé que tinha mais à mão, e dessa vez, foi mesmo o direito.
Depois, veio o final do jogo, o banho, a pomada nos músculos e o gelo nas pisaduras. Confortados com cuecas quentes lá fomos para os lados da Lixa fazer a segunda parte da jornada, o convívio com uma boa jantarada oferecida pelos lorpas dos visitados. Boa gente!
Chegamos a casa quase de madrugada, perros dos ossos e pesados da barriga. O próximo jogo só dali a uns meses quando a malta estivesse restabelecida.
Há coisas assim, e num desconforto de chuva e frio lá surge um golaço como um raio de sol, mesmo que fosse de pouca dura.