Tenho para mim que o Belmiro é um revoltado. Mas de uma revolta obscura, enigmática, porque nunca sabemos distinguir se apenas com os outros, com o mundo, ou se apenas com ele próprio.
O raio do homem não está sossegado em lado algum e se está aqui, já está a pensar em ir ali, e se ali, já pronto a ir acolá. Depois, se está aqui está como se não estivesse, porque com o olhar distante como se já a ver o que mais ninguém vê.
Apesar disso, o Belmiro é figura indispensável numa roda de amigos, no café ou num evento da aldeia. Todos, à sua roda, gostam de o ouvir contar histórias, que são anedotas ou anedotas que são histórias. E quanto mais se riem os seus ouvintes, mais ele conta e encanta. Mesmo que uma história repetida, porque já contada mil vezes, ele adorna-a e veste-a com diferentes roupagens e passa por ser nova.
Mas num repente, ainda Fernando, o Musga e o Neves se riam desbragadamente da sua última história, sobre aquela vez em que o Quim Correia enfrentou o padre da aldeia a propósito deste ter mandado interromper a música nos altifalantes na festa de S. Januário, porque queria dormir a sesta, e já o Belmiro estava a engrenar a primeira a caminho de um sítio que naquele momento nem próprio sabia para onde. Como muitas vezes, daria a volta ao quarteirão, passaria à casa da Helena na esperança de a ver de cócoras a mexer nos bolbos das tulipas e dali a nada estaria de novo cercado por uma plateia atenta às suas novas velhas histórias. Com sorte, ouviriam aquela em que o Manduca indo arriar o calhau ao mato acabou a limpar o dito cujo com um sapo que inadvertidamente por ali passava ou do Zé da Canoa que ia às putas e lhes pagava com bolachas Maria, torradas e uma garrafa de Sumol de ananás.
É, pois, este Belmiro, uma figura revoltada mas apreciada, mesmo estimada. Ademais a sua revolta não é revolucionária, daquela que assalta quartéis e derruba governos, mas antes espiritual, psicológica mesmo.
Não espanta que nessa dualidade de cómico e de revoltado o Belmiro também divida opiniões sobre a sua forma de ser e estar. Há quem de facto o aprecie, mas também quem lhe tenha um certo fastio para não dizer ódio de estimação porque o consideram um montador nato de minas e armadilhas, um mestre de intrigas capaz de virar a unha contra a carne. Cose aqui, descose ali, compõe acolá, descompõe além e num repente consegue o que quer. Não surpreende que nessa agilidade teatral o Belmiro tenha já feito deitar por terra negócios apalavrados e revirado acordos e contratos mesmo a quem tem a palavra por honrada.
Mas o Belmiro tem andado mais soturno e as suas histórias já cheiram a rançosas e os ouvintes já são menos e não riem tanto, desde que há bem pouco ele próprio foi apanhado numa teia que andou minuciosamente a tecer para emperrar um negócio da venda de um porco que o Manel da Nanda tinha prometido ao Silva da Lamosa. Acabou por ser ele próprio a comprar o porco, entregue prontinho em casa, morto e desmanchado, aviado em febras, lombos e rojões. Só depois de convocada a família para a rojoada e papas de sarrabulho é que percebeu, que aquilo não sabia a nada, uma vulgar carne industrial de um qualquer talho.
Rapidamente descobriu que afinal o Manel da Nanda, com rebate de consciência à palavra dada, vendera mesmo o bicho caseiro ao Lamosa. Desculpando-se e justificando a queixa do Belmiro pela carne de fraca qualidade, sem gosto nem sabor a caseiro, rogou-lhe o Manel que lhe perdoasse a troca, ...que matara dois iguais mas que o que a ele lhe calhou não gostava de couves nem milho e apenas comia ração industrial e o que sobrava da ração dos cães.
Feitas as contas, verificados os factos, o Belmiro nem foi enganado, apenas provou da sua velha estratégia e tem que admitir que por vezes os melhores planos têm furos.
Não sei se contará esta como uma das suas histórias à malta do costume quando de novo o cercarem, mas acredito que sim, nem que lhe dê uma caiadela e que troque os nomes aos intérpretes. Afinal sempre ouvimos dizer que rir de nós próprios é melhor que uma consulta no médico ou psicólogo.
Certo é que o Belmiro, mesmo fazendo rir os outros com as suas histórias, parece andar agora mais revoltado desde que comeu os rojões vulgares a pensar que eram caseiros.
Quem não se importou com a infelicidade do Belmiro, foi o Silva da Lamosa, que, por despeito o tendo como "um burro", sentenciou “...Que se foda! Os burros também se ensinam!”