Início da manhã numa Segunda-Feira fresca mas a prometer sol.
Quando vamos a Santa Maria da Feira já parece que vamos ao Porto ou a Braga e o trânsito transborda pelas ruas como nos velhos regos quanto o Ti Manel abria o bueiro da presa das Corgas. Mas aí a água corria límpida e fresca pelos canais desimpedidos a caminho da rega dos milhos, do feijão ou das batatas ressequidas a estalar a terra. Já o trânsito de agora flui aos solavancos, porque ordenado pelas rotundas, pelos semáforos ou por alguém que se mete, ora da esquerda, ora da direita, um motard armado aos cucos que não aprendeu o significado de uma linha contínua ou um peão descontraído que atravessa a dois metros da passadeira. Um autêntico lufa-lufa e quem não quiser ter surpresas nesta batalha de máquinas quase voadoras, tem que sair mais cedo da toca para se pôr a horas aonde tem compromisso.
Desta vez, a caminho para uma consulta externa no Hospital da Feira. Não há quem o não saiba, mas o parque de estacionamento do hospital foi projectado como se fora para um pequeno centro de saúde e por isso de há anos que é pouco para as encomendas e encontrar um lugarzinho vago, mesmo que apertadinho ou nas bordas dos acessos, face a tantos carros tem que ter carradas de paciência e esperar em fila que algum saia ou andar por ali num interminável carrocel como a bolinha na roleta da sorte, como antigamente nas festas do Viso ou do Santo Ovídeo. O próprio hospital já recomenda que não se utilize o seu parque e o remédio é estacionar a pagar, uma praga moderna que veio para ficar e chular os já muito chupados contribuintes, ou bem ao largo dos parquímetros num daqueles parques privativos que são autênticas minas de fazer dinheiro sem que o dono ou explorador pague um cêntimo de impostos. Típico de portugueses espertos.
Felizmente, construiram a cinco minutos dalia a pé o Lidl e o Mercadona e os respectivos parques têm servido como uma boa e grátis alternativa. O hospital bem que lhes podia pagar uma avença como recompensa. Mas não pagará, que o Estado, já se sabe, é mau pagador, e cheira-me que um dia destes os estabelecimentos vão ter que arranjar algum controlo de acesso aos parques porque já devem ter cheirado o refugado e percebido que muitos que ali estacionam não é para entrar e comprar batatas ou arroz mas sim para irem aos senhores doutores do hospital ali perto. Afinal, à vontade não é à vontadinha.
Na sala de acesso às consultas, e ainda não eram 8 horas, já havia fila para o check-point e os habituais remoques para quem, mais desenrascado, fazia a verificação nas máquinas laterais, estas sem pessoal da casa a orientar. Mas explicou a auxiliar que as máquinas laterais eram para quem as soubesse utilizar pelo que quem estava na fila e a elas não recorria não podia reclamar que outros o fizessem. Mas reclamavam porque português que se preze, reclama por tudo e por nada. Eu também reclamo, por vezes por nada e tantas por tudo, mas por ali não dei razão ao senhor de bigode farfalhudo nem à senhora enorme (porque agora é politicamente incorrecto classificar alguém como gordo ou gorda). Que fizessem o mesmo e enfrentassem as tecnologias! Mas qual quê? Isto de inserir o cartão de cidadão numa ranhura, esperar e carregar com o dedo na marca para imprimir a senha, é para muitos uma tarefa de todo o tamanho. Mais fácil sachar um campo de batatas ou deitar abaixo um pires de moelas no Ramadinha.
- Siga a linha laranja! Uma terminologia de metropolitano que depois de passar por um corredor sem grandes paisagens, apesar da bonitona de mini-saia e salto alto que seguia na frente, desembocava numa apertada sala de espera já cheia de gente à espera e alguma gente já cheia de esperar. Depois, a voz artificial da menina do ecrã das chamadas que ora chamava a senha M76 como a seguir a M12 como depois a M99 ou a R35 ou a A25, pelo que não valia pena a quem naquela anarquia procurava algum padrão harmónico. Matutar nessa confusão era aumentar o stress. Pois se então a minha senha era o 22 e o fulano do 99 chegou à sala muito depois de mim, porque é que foi chamado muito antes? É esquecer! Ali não há lugar a lógica nem à lei da gravidade pelo que sol é que circunda a terra e os rios nascem no mar!
Depois é gente a ir às casas de banho e a deixarem as portas abertas para o pessoal ouvir o troar dos canhões e a cascata da sanita. Saem aliviadas as criaturas mas as portas abertas ficam porque o aroma deve ser a alecrim e a alfazema como em dia de procissão. Há criancinhas a berrarem a faltarem ao infantário, já com problemas de oftalmologia mas não de garganta, velhinhos amparados por filhos que faltaram ao trabalho a tossir numa pigarreira desgraçada, mas já todos livres, sem máscara, porque isto de tossir para dentro de uma fralda tem que se lhe diga. Além do mais, para mal dos pecados do arejamento, diz o regulamento das construções que os compartimentos de estebelecimentos têm que ter um mínimo de 3,00 m de pé-direito (altura do piso ao tecto) mas ali acharam por bem fazer por menos e desconfio que não chega aos 2,40 m. Para a próxima levo a fita métrica ou o medidor laser para matar aquela dúvida mesmo não a tendo.
Finalmente, depois de quase uma hora ainda dentro do horário da consulta, que já havia sido adiada duas vezes, e depois de meia hora para além da hora marcada, fui chamado pelo próprio senhor doutor que estava com ares de ter acordado tarde e tarde chegado ao trabalho, mesmo que não tenha tido necessidade de ir estacionar no Mercadona. Mas era tão simpático quanto novo e passou a consulta a escrever no teclado pelo que fiquei sem ter a certeza se estava a tomar notas do que se ía falando ou se a entreter-se no Whatsapp ou no Tinder.
Como suspeitava, e sempre que espero carradas de tempo nestes sítios, em 5 minutos estava despachado. Na despedida disse-me que ficasse tranquilo que a coisa parecia normal, mas que por via de dúvidas seria chamado para um exame a confirmar o tamanho exacto da coisa, mas que a tal máquina sofisticada que há-de fazer a medição estava ausente, e que não sabiam se iria demorar um mês ou um ano a regressar à casa. Por isso ou seria ali no dia de Santo Não Se Sabe Quando ou então no Porto, dali a uns meses ou mais uns picos. Quantos, também não sabia dizer, mas que depois notificavam a dar a novidade.
Aviado, passo pela sala de entrada com uma fila ainda maior e a serpentear pelo que deu-me um flashback e por momentos vi-me no processo de vacina Covid no Europarque. Mas não, era tudo gente para tirar a senha pelo que a maior parte, supostamente doente, haveria de passar ali o resto da manhã ou mesmo parte da tarde. Ele há coisas e fora as greves, há sempre médicos entupidos no trânsito e a tomarem café a toda a hora.
Regresso aliviado ao Mercadona por um passeio repleto de peões a marchar nos dois sentidos, quase todos com exames do Centro Médio da Praça nas mãos, com ares de quem nao íam a Fátima a pé, mas ali ao lado ao hospital de S. Sebastião que, não sendo Nossa Senhora, foi mártir e faz parte da gente santa.
- Vale-nos, S. Sebastião, que te enchemos de doces fogaças, para que nos livres desta fome peste e guerra que é ir à cidade em hora de ponta a uma consulta hospitalar!
Santa Maria da Feira, uma feira de gente santa!