22 de julho de 2023

É Sábado, está sol, pés ao caminho...

 


Neste Sábado, porque estava sol, pés ao caminho bem cedo e subida à Freita, porque em cada hora, em cada dia ou mês, há sempre quadros com diferentes cores. Ainda há pouco, flores, agora frutos. Antes terra lavrada, agora milho já embandeirado. Ainda em Maio o Caima bradava vigoroso e agora lamenta-se molengão. O pintor pode ser renascentista, barroco, romântico, impressionista ou naturalista, que ali encontra a luz sempre diferente e as paletas de cores adequadas à inspiração.

Hoje sem companhia, apenas, sem convite,  um podengo dourado que se juntou sorrateiro, a que chamamos de "Raio de Cão", que quase parecia ser um guia, um sherpa da Freita, habituado áqueles caminhos e pedras. Quando parecia desencaminhado, surgia inesperado já de nariz nos nossos calcanhares. Mas, lá pelo sítio onde nasce o Caima, talvez sendento, desviou-se e atalhou pelas fragas em direcção ao Serlei.

Na Castanheira, um dos poucos casais da aldeia, arrancava batatas e ainda esperei ver ali malta dos trails e dos chalanges a fazer daquilo uma prova, mas não, confirmando-se a profecia de que "...se fosse para arrancar batatas ninguém aparecia". Ainda nos oferecemos mas disseram agradecidos, que não, que estavam já a acabar. Mas, pareceu-me, a colheita foi generosa para a rudeza daqueles concharelos ladeados de fragas e cada pequeno carreiro produzia um saco. O lavrador dava graças por tanta batata, mostrando uma das grandes e sorria debaixo daquele bigode de piaçaba.

Mais à frente, na dobra do lugar, uma senhora nos degraus gastos de um casebre deu os bons dias e mendigou uma esmola como se estivesse na Senhora da Saúde. Que era pobre, com uma reformazita de miséria que se esvaía na farmácia e que a Junta e Câmara não ajudavam. Que era solteirona e não tinha filhos para lhe valer. Tomando fé no lamento, dei-lhe duas moedas de 1 euro, que daria para alguns pães, e já caminho abaixo lamentei que Arouca tivesse milhões para fazer uma ponte para suspender turistas e não tenha uns trocos para acudir aos seus que precisam, deixando-os suspensos naquela vertigem de pobreza. Contradições.

Da Castanheira a Cabaços são dois passos, um saltinho por uma ribanceira íngreme e de pedras soltas, que fez jorrar suor que até ali, talvez pela suave brisa, não se sentiu. Já em Cabaços, pela ruela atapetada de estrume de cabras e vacas saltaram-nos à frente dois mastins enfurecidos, como se fôssemos políticos, a mostrarem xilofones de dentes afiados e ainda por cima com coleiras que pareciam a coroa de espinhos com que flagelaram a santa cabeça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Houvesse luta e nem aos pescoços lhe podíamos chegar.  A coisa ficou feia porque desarmados sem um bom quebra-queixadas e não recuavam as bestas, como um boxeur a levar às cordas o adversário, mas do cimo da escada mal talhada assomou à porta uma velhinha escurecida pelo fumo e engelhada pela idade, com um pau na mão, a gritar p´ra trás Judas!, p´ra trás Barrabás! e então os mastins, obedientes, recuaram, mas sempre a dizerem por latidos que lhes apetecia morder canelas e pescoços de caminheiros. Com nomes assim dados a feras, a coisa deu ares de um caminho de calvário com a diferença de não termos ali um Cireneu que nos acudisse naquela cruz nem uma Verónica a limpar-nos o suor do calafrio.

Logo à frente, ainda mal refeitos do susto, chegamos ao ponto de partida, em Albergaria da Serra, que já foi das Cabras, e onde um grupo de ditos motards passou a poluir de fumo e roncaria o sereno lugar e do cheiro a estrume empestou-se o de gasolina. Bem que podiam estar todos nos Algarves. Respirava-se melhor por cá.

E pronto, jornada feita! Mais abaixo o S. Pedro esperava-nos com uma económica diária onde se aviou feijoada e rojões caseiros. Nada se perdeu e o dia ficou ganho.

Ficam de seguida alguns dos muitos olhares, de trás para a frente.