Pergunte-se a qualquer um dos vivos da aldeia da Urzeira sobre o julgamento que fazem do Alziro e todos responderão a uma voz que é homem de bem, bom marido, pai e avô. Homem de fé, é assíduo na igreja e pronto a ajudar em tudo quanto for para o bem da comunidade. De tudo quanto é festa na paróquia já tomou parte e já perdeu a conta às vezes que vestiu e despiu opas em procissões das humildes às mais solenes, a levantar lamparinas, a levar a cruz, ou a pegar nas varas do pálio. De dinheiro, já perdeu a conta ao que entregou em peditórios, em oblatas, folares ao pároco, ao Menino pelo Natal, e deixa nos cestos dos ofertórios.
Porque não somos feitos de vidro transparente, o interior de cada alma é um insondável mistério, tantas vezes obscuro e conturbado e daí que raramente tenhamos a capacidade de os vislumbrar, quanto mais perceber. Ora o Alziro, para lá dessa radiação de bom ser humano, certinho e previsível nas suas acções, não raras vezes é um turbilhão de contradições que o fustiga por dentro e se noutros tempos, absorvido ou distraído com o ramerrão do dia-a-dia, do emprego e da família, não fazia mossa nem dava tempo e lugar a discussões consigo próprio, reformado que está agora e disponível a horas vazias, mesmo quando desperta a meio da noite sem sono, a sua consciência tem andado como peregrina às voltas e voltas nos caminhos do que até ali teve como vida, percorrendo tempos de infância, da escola, da juventude e dos namoricos, o tempo na tropa, o casamento com a sua doce Amélia, os filhos, o emprego, etc etc.
Nesta azáfama, faz contas e interroga-se se qualquer uma das decisões que tomou foram bem ou mal decididas, se cada direcção tomada foi a certa e se agora faria diferente? Pesa ponderadamente as circunstâncias mas decide quase sempre a favor de que fez como tinha que ser feito. Traz à memória um caso ou outro em que se encheu de coragem, como quando foi às trombas do Alcino por este ter sugerido uma falcatrua nas contas da festa do Senhor dos Milagres, ou se acobardou quando devia ter feito o mesmo ao Marcolino quando lhe chamou batoteiro por, sem querer, ter feito uma arrenúncia num jogo de sueca. Mas considera agora que essas e outras parecidas foram coisas triviais e que não é por elas que fica sem sono quando convém dormir. No resto sempre procurou ser correcto, honrado e bom cristão. Nada lhe pesa na consciência e o turbilhão que o assalta interiomente acaba, afinal, por ser apenas uma ocupação ou mesmo um rever das contas da vida, agora que se aproxima do prazo, não vá ainda ter que fazer algum acerto com o Criador enquanto há tempo.
Num destes dias, e como o faz com frequência, foi dar uma volta ao cemitério e distribuir padres-nossos e avé-marias pelos antepassados e amigos, à campa de seu pai, mas também às dos avôs. Ora em frente à lápide de mármore com o retrato sépia do avô paterno, seu padrinho, que já partira há uma vintena de anos, ficou ali a olhá-lo nos olhos, também a fazer contas do que foram as suas lembranças nas circunstências em que se cruzaram, desde as ligadas à infância até tempos mais à frente e mesmo já quando na parte final da sua vida, encamado, lhe ía desfazer a barba aos sábados à tarde e pela vez derradeira já morto, com o rosto frio e duro. E ficava a remoer as esperanças que aquele avô noutros tempos lhe alimentara, como a lhe pagar os estudos, comprar bicicleta e depois a motorizada e mesmo deixar-lhe algum do dinheiro que se gabava de ter em fartura no Banco. Mas certo é que feitas e refeitas as contas, o Alziro há muito que percebeu que essas promessas tantas vezes feitas sob o efeito de um copito a mais, não passaram disso mesmo, de vãs esperanças e vontades não concretizadas, porque em rigor, e dizia-lho ali silenciosamente frente à sua sepultura, nada disso levou a cabo nem mesmo na leitura do testamento ouviu qualquer referência a alguns trocos a si deixados. Em resumo, colheu uma mão cheia de nada.
Esses incumprimentos do padrinho, que nunca passaram de aldrabices e meras intenções de quem as esquecia depois de uns copos, em boa verdade pouco incomodam o Alziro, porque desde há muito, mesmo com ele ainda vivo, percebera que este nunca passara de um "caga-lérias" e dele nem rebuçado ou brinquedo recebera. Fazia-lhe mais mossa, isso sim, o saber que a sua mãe fora por ele destratada desde criança, numa vida triste de coça, fome e miséria, o que a levou cedo a casar para fugir daquele castigo que, de resto, era o pão-nosso-de-cada-dia em toda a aldeia. Nesses tempos de dificuldades, aos filhos não se davam mimos nem sopas de frango, mas porrada, alguma de criar bicho, e fome mitigada ou enganada com caldo de couves. Isso sim, lamentava o Alziro, porque do resto cedo percebeu que dali não viria nada mesmo que inicialmente alimentasse essa ilusão. Até mesmo quando lhe prometera que tinha conhecimentos que o impediriam de ir à tropa, no dia certo apresentou-se no quartel já convicto que fora apenas mais um arremedo inconsequente do avô. Não se enganara.
O Alziro inquieta-se com estas coisas e sempre que entra no cemitério, defronte daquela gente enterrada, desenterra estas memórias e pergunta a si mesmo porque é que tantos vivos ali vão rezar e assear as tampas daquelas covas frias quando grande parte daquela gente morta não lhes deixou mais que más e duras memórias. Mas talvez para amainar esse mar revolto nos seus pensamentos, procura compreender e aceitar a situação. Afinal num cemitério estão enterrados os nossos antepassados e todas as circunstâncias das suas vidas, algumas boas, muitas outras más, mas todas decorrentes da massa com que foram moldados e nesse derradeito esforço de compreensão, pelo menos ali, naquele lugar que dizem sagrado, tem que haver lugar ao choro dos bons que partiram, cedo ou tarde, mas também e sobretudo ao perdão. Tudo ali está enterrado: a inocência, a bondade, o sofrimento, o castigo e a maldade. Pela fé, e acredita nisso o Alziro, as verdadeiras contas, o final julgamento, essas e esse será feito pelo Criador que tudo vê, submete e julga.