O Ezequiel, o Sr. Oliveira como gosta que o tretem, reformado que está depois de passar o negócio das tintas ao genro, mantém ainda velhos costumes de quando foi presidente da Junta de Gueifães e assim, logo que levantado, em caminho para o Central, o único café da aldeia, montava o seu velho mercedes e lá ía dar uma volta completa e demorada pelas ruas da freguesia como um dono a assegurar-se de que tudo estava nos conformes, no seu lugar. Sim, porque mesmo que minguada de gente, a aldeia não era coisa de correr em dez minutos e por isso, se chuvia ou ventava, havia sempre umas sarjetas a mandar limpar, um muro tombado a exigir reparação, uma árvore atravessada a ser removida, uma água a alagar os baixios a ser desviada. Mas também gostava de encontrar alguém e, mesmo sem saír do carro, meter conversa, mais para tirar nabos do púcaro e a pensar na popularidade que renderia votos na reeleição do que por motivo franco.
Mantém esse hábito o Sr. Oliveira e ainda hoje, mesmo que já não todos os dias nem se preocupando agora com sarjetas entupidas ou derrocadas nas cruvas, ainda dá as suas voltas pela freguesia mas, mesmo que as dê pela fresca matina ou a meio da tarde, o resultado é quase sempre o mesmo mas com uma diferença: Tudo continua no mesmo sítio mas gente com quem conversar, e sobretudo bons conversadores, é que já não se encontra e as ruas cada vez estão mais desertas. Alguns reformados que antes ainda se viam a cavar na horta ou a podar umas videiras, com quem seria fácil meter conversa, estão agora pelos lares entretidos com actividades escolares como se voltassem a ser crianças.
Assim, invariavelmente desconsolado, lá chega ao Central para tomar o café, também ele à semana quase deserto de gente, com um ou outro surumbático a ler o jornal de fio a pavio, como o cunhado, o Nando da Micas, que nem sequer levanta os olhos para cumprimentar quem entra ou o Alfredo a foder a pensão nas raspadinhas. Ao fim de semana, sábado ou domingo, sempre se encontra mais gente mas mesmo assim não é como dantes em que era certinho e direitinho que se encontrasse o Neca do Pinho tinha ali conversa para uma ou duas horas mesmo que tantas vezes a repetirem-se histórias e episódios antes contados. Ali no Central ou junto à porta dele onde de propósito parava, gostava de ouvir o Pinho, figura austera e culta de ler jornais e ver telejornais, ainda na sua altiva pose de sargento que foi na tropa. Reconta-lhe pela enésima vez episódios a merecerem barrigadas de riso ou bocas abertas de espanto como a luta que na sua várzea travou com o Adelino, seu confrontante, em que ora por uma questão de águas, ora por uma disputa de passagem de servidão, lá se engalfinharam e puxando do canivete com que nas merendas lascava salpicão e queijo lhe subtraiu meia orelha e só não lhe cortou o pescoço porque o canivete não dava para tanto, mas que tivesse ali à mão a catana ou o foucinhão e seria de um só golpe.
Esta e outras histórias, do Pinho, mas também do Zeferino, do Fanecas e de outros mais castiços da aldeia, gostava de ouvir o Ezequiel que depois, como bom contador que era, lhes acrescentava, aos contos, os pontos necessários para lhes aumentar os enredos dramáticos ou contornos de comédia, conforme lho pedisse a plateia que o cercava quando o Central tinha clientes bastantes.
Mas o tempo passou e o Ezequiel está mais velho, o Pinho e companhia já foram à vida e já não há quem ajude o velho autarca a não só a matar o tempo que tem de sobra como para lhe aumentar o rol de histórias a meterem zangas entre comadres, disputas entre vizinhos, ameaças entre confrontantes de matos e leiras, lutas políticas e partidárias, segredos da sacristia e provocações de adeptos da bola. Nada! Uma triste tristeza os tempos de agora em que falta gente capaz. Dos mais novos parece que já nada têm que contar e que a vida lhes passa sem qualquer desassossego, sem dramas, misérias ou estados de alma que sejam dignos de ser contados e recontados. E se os há, já não são confidenciados em surdina e sob jura de segredo ao Ezequiel. Quem quiser agora saber destas coisas, de novidades das gentes da aldeia, das sua vaidades e invejas, tem que andar a chafurdar pelas redes sociais, pelo Facebook.
Ora o Ezequiel Oliveira sempre se teve em conta como pessoa culta e bem formada mas com as novas tecnologias é que nunca passou de um zero à esquerda e já é atrapalhação bastante o ter que usar o telemóvel a fazer e receber chamadas, quanto mais para andar nessas coisas de facebooks.
Mas é pena, pois o Ezequiel era um bom guardador de memórias mas o tempo, os novos, não se compadecem com estas coisas, com estas virtudes e actualmente já são poucos os bons conversadores e sobretudo os que têm algo para contar. Hoje em dia andamos todos tão igualmente formatados que até parece que feitos da mesma massa e forma. Ora os que destas bases saem desformatos, com algum defeito de fabrico, são, como na cunhagem de moedas, peças raras e valiosas. Difícil e pôr-lhes os olhos em cima.
Tem que se conformar o Ezequiel porque estes são tempos novos e diferentes e quanto a conversas e conversadores, estamos conversados!