Há muito que me desacreditei da verdadeira utilidade ou motivo fundado das redes sociais, como o Facebook, e assim por entre pausas sanitárias lá vou ganhando fôlego para um novo mergulho e retomando a ligação, já não tanto para beber, que as fontes ou estão secas ou inquinadas, mas apenas como alguém idoso que à sombra de um beiral de uma casita de esquinas coçadas de algumas das nossas aldeias interiores e quase desertas, ainda aponta com sentido de utilidade a direcção certa para uma sítio ou curiosidade que um ou outro turista de roteiro nas mãos procura mas não encontra. - Ali à esquerda, ao fundo daquela vereda e depois a cerca de 100 metros a subir, corta à direita e vai descendo até encontrar do lado esquerdo! Não tem que enganar!
Em suma, já pouco de verdadeiro e de talento próprio que mereça a atenção, ali desagua, mas de quando em vez lá surge um vislumbre de que ainda há gente que para lá do seu umbigo partilha coisas interessantes e em resposta alguém expressa reconhecimento, acrescenta valor ou até se emociona.
Ainda há dias, fora da lista de "amigos", alguém partilhava por cá um pedaço de prosa do José Saramago, a parte inicial do seu discurso aquando do recebimento do Nobel da Literatura, a descrever os seus avôs e os seus modos de vida e de pensamento parante a mesma, a ponto de dormirem com os porcos pequenos na mesma cama, não por questões de afecto mas tão somente para, preservando-os do frio, aumentar as suas possibilidades de sobrevivência e que depois de criados e vendidos seriam eles próprios pão-nosso-de-cada-dia dos criadores. A este pedaço de prosa, que poucos leem porque mal habituados a frases curtas e grossas, alguém respondeu "...que emocionante".
Sim, de facto, até eu que não tenho em Saramago a leitura mais favorita, quando já havia lido o seu discurso, deliciei-me de princípio ao fim e também me emocionei, não pela qualidade da escrita mas por toda aquela cena, aquele quadro de vida, ser autêntico e com gente verdadeira. Era na Azinhaga do Ribatejo mas poderia ser aqui em Guisande, no Viso, no Reguengo ou em qualquer outro lugar no tempo dos nossos avôs e bisavós. A vida era de miséria e trabalho duro mas era plena e na mais profunda ligação entre o ser humano, a terra e os animais. Não tenho memória de lá por casa se ter dormido com porquinhos mas dormiu-se várias vezes no aido ao lado vacxa que estaria para parir.
Também eu, de talento escasso face à grandeza de Saramago, poderia aqui tentar descrever cenas desse tempo, de gente dessa cepa retorcida, em que nos poucos momentos em que o corpo não podia recusar o descanso, as noites eram passadas a olhar um tecto de estrelas e apesar da ignorância das letras e das ciências, o homem de antanho questionava Deus sobre todas as coisas e o sentido delas. Se antes de adormecer o corpo cansado era todo ele um poço de dúvidas, logo que volvidas poucas horas e o sol já a despontar pelos pinhais, a bater nas janelas ou por entre as folhas da árvores da horta, tinha na ponta da língua todas as respostas ao que era preciso fazer para mais um dia assegurar a sua sobrevivência e dos seus. Cuidava dos animais e dos filhos com o mesmo peso e medida e das coisas da terra tratava como um mestre, esclarecido e sem dúvidas. Se delas persistia uma ou outra num momento de distracção dos afazares, à noite voltaria a questionar o Criador.
A fonte das emoções jorra caudalosa mas são poucos aqueles que dela se abeiram com sede.