Sou resultado de um tempo e de uma educação em que o lugar a carinhos e outras expressões de afectos filiais ou de outra natureza, eram escassos ou distribuídos com parcimónia. De um filho esperava-se que, logo que com passos firmes, cabeça com entendimento bastante para compreender e aceitar ordens e corpo capaz de suportar tarefas, fosse mais um criado de servir a casa e ajudar na parca economia arrancada da terra, mitigada nas tetas de uma vaca ou nos ovos que se confirmavam com o mindinho estarem no cu da galinha.
Era assim no tempo dos nossos pais e antes deles, dos seus e nossos avós. Por conseguinte de uns para os outros foi passando esta herança de poucos recursos incluindo os afectos. Não surpreende por isso que a muitos, a juntar à fome, miséria e trabalho duro, se somassem valentes coças, daquelas que enegreciam o corpo mas que, paradoxalmente, a dar forma ao ditado de que "o que não mata engorda", ajudavam a formar gente dura e resistente ou, como modernamente se diz, resiliente.
Decorre destas ideias de que no geral somos fruto do tempo e das condições dele em cada época da nossa história e sociedade. Uma macieira dá maçãs e uma oliveira azeitonas. É, se quisermos, a ordem natural das coisas e mesmo da natureza.
Pela parte que me toca e creio que dos meus, nunca houve fartura, daquela que mesmo hoje em dia qualquer classificado como pobre, dispõe e até esbanja se não for da sua medida e agrado, mas também nunca se passou fome, nem necessário foi andar descalço, roto e despido, mesmo que as roupas de uns se acomodassem a outros. E também nunca houve maus tratos e coças para além das que hoje em dia faltam por defeito para repor algum sentido de disciplina e responsabilidade. Os afectos esses eram expressos pela sopa com pão colocada na mesa, pela roupa lavada e remendada, por um brinquedo, mesmo que simples, num momento especial, pelo aconchegar a roupa na cama em dia de frio, pelo lugar ao lado da fogueira em noites de frio, pelo rato de chocolate pelo Natal, por uma amêndoa na Páscoa. O resto, abraços e beijinhos, esses eram interiores e não havia tempo para eles. Sentiam-se mutuamente numa centelha espiritual mas raramente física.
Quanto à mão estendida para rectificar a indisciplina, lá sabem agora os novos o que isso é? De resto ainda por estes dias foi notícia de que as autoridades apreenderam nas nossas escolas algumas dezenas de armas entre os alunos (e nestas coisas apenas uma pontinha do icebergue). Além disto, notícias de agressões, como ainda agora no Vimioso, e de alunos a professores, tornaram-se banais e inconsequentes. As escolas, convenhamos, são tudo menos exemplos de disciplina e boas maneiras e mesmo no que ao ensino diz respeito, basta atentar nos resultados, com serviços mínimos ou mesmo negativos. É o que é. Um burro nunca há-de ser cavalo.
Mas onde queria chegar? À questão da herança dos afectos. Se nesses tempos passados foi como resumi, e cada um terá a sua própria memória e experiência, no geral os que assim foram moldados e cresceram raramente são expansivos na manifestação para com os seus. Não porque não os tenham ou sintam, mas porque os consideram como supérfluos ou mesmo inúteis. De resto os sentimentos na sua essência são invisíveis quanto mais profundos. Se um filho não chora ao lado do caixão de um pai ou mãe é porque a sua dor é interior daquela que dilacera por dentro. Ao contrário, sem qualquer ligação afectiva, é ver algumas carpideiras agarradas aos mortos ou aos vivos num choro e numa dor patéticas e desproporcionadas porque fingidas ou encenadas.
Os tempos mudaram e a avaliar pelo que se vai vendo, nomeadamente pelas redes sociais, parece que hoje em dia é que as pessoas sabem amar e ser carinhosas. É só paixão, amor e carinho, abraços e beijos a filhos, a amantes e namorados, juras de amor, algumas patéticas porque inconsequentes. Mas vive-se disto, destas aparências, e para mal dos nossos pecados no geral não passa de uma teatralização onde se espera que as plateias aplaudam demoradamente. É certo que não será por aqui que virá o mal ao mundo e nestas coisas é como a presunção e água-benta que cada um toma a que quer, mas o artifício, como o fogo dele, é sempre efêmero, mesmo que deslumbrante e colorido por uns lapsos de segundo.