O Chico do Vieira enviuvou cedo. Tão medonho mal apanhou a Alzira que em pouco se apagou. Depois de desanuviada a negra nuvem da dor e do luto, ainda o rondaram com oferecidos galanteios, daqueles que só não vê quem é cego, algumas jeitosas pretendentes, solteironas, divorciadas e até mal casadas, sabedoras da sua gentileza, da boa estampa apesar de maduro, com casa montada, bom carro e emprego estável numa repartição pública, mas a todas esvaziou com a subtileza dos comportamentos de lobo solitário. Considerou que o que precisava depois da partida da sua alma gémea, era cumprir na solidão uma caminhada de serenidade, física e espiritual, quase como uma travessia de deserto daquelas que buscam os santos eremitas.
Logo depois, chegada a hora, nem mais um segundo, reformou-se e desde esse primeiro dia que se impôs a uma rotina disciplinadora para que não se perdesse numa modorra que conduz ao limiar da loucura. Assim, levantava-se sempre às sete e meia da manhã, espreitasse o sol pela janela do quarto ou nos vidros da janela batessem as gordas bátegas de chuva. A seguir, na casa de banho, eram sempre quinze minutos para o essencial, o escanhoar da barba e do ordenamento da basta cabeleira, já grisalha. Banhos gostava de os tomar antes de deitar. De seguida o pequeno almoço na pastelaria da esquina, a leitura das gordas nos jornais, e minutos depois caminhava já em passo acelerado pelos caminhos da redondezas, tanto quanto possível por onde não andasse alguém. Ao meio dia-e-meio era cliente diário no restaurante do Quintela. E era assim o resto do dia com coisas certas, a horas marcadas, como que comandado por um treinador de apito na boca e cronómetro na mão. Conversas poucas e só com amigos raros e mesmo assim apenas para não dar ares de bicho de buraco. Mas, não fora essa obrigação social e consideração de outros tempos, dispensaria de bom grado as conversas de lana caprina sobre o estado do país, da política e dos políticos, do futebol, etc..
Deitava-se sempre às onze, depois de ler algumas páginas de um dos muitos livros e em regra dormia bem até que o ciclo recomeçava no dia seguinte. Corriam os dias, as semanas e os meses e com eles os anos pareciam cavalgar num trote certinho, sem sobressaltos.
Um dia, porém o Francisco, não se sabe por que carga de razões, quebrou a rotina e foi tomar o pequeno almoço na freguesia vizinha e servido por tão graciosa rapariga, de olhos negros profundos, num corpo esbelto de viço, e tão simpática e afável no trato como se o conhecesse desde sempre. Não consegue justificar-se sobre que aranha lhe mordeu quando percebeu que começou a ir ali, não apenas uma, mas duas ou três vezes por semana e não somente pelos pastéis de nata ou torradas. Pouco mais à frente, já era presença diária e fazia por prolongar aqueles momentos que ali passava simulando que se entretinha a ler o jornal de fio a pavio e a terminar com uma bagaceira, mas na verdade sempre com os olhos a fugirem para os da empregada que, mais doces que os pastéis que servia, os encontrava e retribuía. Começou a baralhar as tarefas que tinha na rotina inabalável dos seus dias, saltando umas e adiando outras. Começou a dormir mal e aquela rapariga, tenra e deslumbrante, era presença nos seus sonhos à noite e pensamentos à luz do dia.
Certo é que passados alguns meses toda a freguesia ficou pasmada quando se espalhou a novidade de que o Francisco se juntara à Teresinha da pastelaria Estrela da Manhã, e de malas aviadas mudara lá para os lados de Castro Daire, de onde era natural a moça.
Há assim nas nossas vidas um não sei quê de que destino, fatalidade ou apenas acaso, que quando damos por ela, dá cabo das mais fundamentadas rotinas, descompondo ideias, desorganizando sonhos, distorcendo as linhas rectas e paralelas que nos guiam, fazendo descarrilar o comboio com as dezenas de carruagens onde arrumamos as nossas coisas certinhas.
Feitas as contas, terá sido melhor assim. Seria demasiado penoso que o Francisco não fosse capaz de se desamarrar daquela disciplina monocórdica que lhe fazia os dias todos tão iguais, tão minuciosamente agendados e preenchidos em todos os minutos e horas dos dia e noites, que às tantas aquilo já não era vida, mas somente um existir, um relógio dominador, uma engrenagem de movimento perpétuo.
Já passaram uns largos meses e a freguesia não voltou a ter notícia do Chico. A filha, a quem entregou as chaves da casa sem grandes justificações, também abalada com a decisão assim de supetão, mal se vê pela aldeia, evita os contactos e se interpelada nem chus nem mus.
Não sabemos, por isso, como corre a vida do Francisco com a fresca Teresinha, lá pelas bandas de Castro Daire, mas por mais revolta e imprevista que seja, será certamente vivida, em que cada dia é diferente do anterior como inesperado será o seguinte. Sem regras, apenas de improviso. Porventura, descascada a sumarenta da companheira, já a achará chocha, desenxabida, ou ela, de tanto o já ter espremido, seguiu para outro pomar, mais fresco. Talvez, uma ou outra coisa ou nenhuma delas, mas na certeza de que a vida do Chico deu uma volta de pernas-para-o-ar. Se caiu de patas como os gatos, se de cu-catrapuz, por ora ainda não se sabe.
Talvez regresse um dia destes, cabisbaixo, rendido, a retomar a antiga rotina, a voltar a almoçar no Quintela, feijoada às sextas, rojões ao Sábado, cabrito ao Domingo.... Talvez!