17 de outubro de 2024

O raio da dicotomia

Confesso que nos últimos tempos a relação ou estado de alma com a minha freguesia tem sido pautada por uma dicotomia que ainda não consegui deslindar. Por vezes ainda consigo ver nela a pujança, vontades e originalidades das décadas de 70 e 80, num desabrochar do jardim de Abril, onde havia intervenção entre adultos e jovens. Havia lugar à política, ao clube e ao futebol, que uniam e o campo de jogos aos Domingos era uma praça de gente de todas as idades.

Os jovens eram criativos, juntavam-se e do pouco faziam muito. Havia escola de música, teatro, biblioteca, jornal e rádio. Havia associações culturais e recreativas.

A paróquia ainda era um rebanho com poucas ovelhas tresmalhadas e o pastor respeitado e todos congregava à ordem de reunir.

A freguesia tinha vida, pulsava, mostrava-se capaz de transpor a sua pequenez e avançar mais além, com uma identidade muito própria, dela e nossa.

Depois veio um período sensaborão, nem sim nem sopas, nem carne nem peixe, e aos poucos a existência comum tem vindo a erodir, a esvair-se. Na roda da vida, os mais novos cansaram-se e ficaram velhos, os mais idosos alquebrados pela idade e doença partiram cada um na sua vez. A emigração aumentou, a natalidade baixou e para cada dezena de gente que parte definitivamente nascem uma, duas ou três crianças.

Os cafés, locais de convívio e tertúlia, fecharam portas ou encerram cedo. As escolas, outrora cheias de criançada e do seu pulsar de vida, há anos que fecharam ao ensino e abriram-se ao abandono. Do aproveitamento delas, incluindo o Centro Cívico, nem todos têm remado para o mesmo lado e não falta quem espalhe pedras e cascas de banana pelo caminho. A igreja deixou de estar cheia e os lugares vazios são quase sempre mais que os ocupados.

A política deixou de despertar interesses e já não há militantes, delegados, simpatizantes, nem nada. O clube de futebol quer ressurgir, vai resistindo, mas nunca mais será como dantes e o eco da multidão a celebrar o golo já não se faz ouvir fora dos muros do recinto.

Nuns impulsos, há jovens que se congregam a querer fazer coisas, mas como flores colhidas a cada Primavera, em breve murcham e perdem a cor e o aroma.

Cada vez mais as pessoas não vivem nem convivem fora de portas e o sentido de comunidade perde-se a olhos vistos. Ainda se veem em dias de festa grande ou de celebrações, mas ninguém passa daí, nem quer assumir cargos ou funções a favor dos outros, de todos. É um egoísmo latente este que vai ficando por entre portas numa mera obrigação de contribuintes, de serviços mínimos, e quanto ao resto alguém que faça ou organize porque nada é com eles mas sempre com os outros.

É certo que esta coisa da união de freguesias em nada ajudou e só veio abafar a realidade que já mal respirava, promovendo o distanciamento, a indiferença, o deixa andar num crescendo de desinteresse.

E vai sendo assim. E contudo, temos tudo. Temos internetes e redes sociais capazes de chamar, de convidar e mostrar. Temos grupos e grupinhos no Facebook e Whatsapp onde combinamos e partilhamos coisas, mais ou menos pessoais, mais ou menos generalistas mas quase sempre pouco a favor do todo.

Temos todos bons carros e boas estradas, computadores e câmaras de fotografar e filmar nos bolsos dos casacos e calças. Comunicamos à velocidade da luz e vemos em directo os rostos de com quem falamos nos antípodas, no Brasil ou na China. Já não há cartas nem esperas pela volta do correio.

Mas tendo tudo, temos nada, porque fora desses casulos virtuais, online, já quase não nos reconhecemos na rua e quando passamos uns pelos outros, sendo incapazes de traduzir num olá, num sorriso, em dois dedos de conversa, o que expressamos online, por emojis ou likes. Somos uns ricos pobres, com tudo e com nada, com mãos cheias de vazio.

Mas esta dicotomia, faz das suas e num repente, ignorando este estado das coisas e das gentes, parece que dá vontade de voltar a acreditar e pensar que as coisas vão melhorar, que cairemos na realidade e aos poucos iremos fazer caminho juntos e estreitar laços e criar comunidade. Jovens e adultos serão capazes de fazer novas coisas porque diferentes são os tempos. Que a freguesia e a paróquia serão capazes de valorizar o legado que os antepassados deixaram com sacrifício e vontade. Entraremos num novo ciclo de fazer e saber fazer, de reforçar a nossa identidade e dela nos orgulharmos.

Mas, tantas vezes, nesta crença, nesta vontade de que seja assim, lá vem algo ou alguém como água fria a descarregar-se nesta ilusão, como pedra de mó a fazer-nos ficar presos à terra quando a vontade é voar.

E recomeça o ciclo da crença e descrença. O raio da dicotomia volta a enredar-nos, a mostrar e a demonstrar que não será fácil qualquer inversão de marcha porque o caminho é sinuoso e estreito.

Em resumo, talvez o que nos faz ainda ter alguma crença em mudanças será mesmo este vai-e-vem, como também a querer significar que a seguir a cada Inverno haverá uma Primavera, mesmo que cada vez mais os tempos andem trocados e às tantas já nem sabemos se as flores exultam na Primavera ou se despontam no Outono.

Assim vamos indo e andando na espera e crença contínuas e cíclicas de que as coisas possam melhorar, numa permanente luta com a dicotomia. Afinal, a cola que ainda mantém esta esperança é o amor que ainda (alguns) temos pela nossa terra, o torrão onde fomos plantados e criamos raízes. Só por isso.