8 de abril de 2025

Fonte, lavadouro e presa de Cimo de Vila


Muitas das minhas memórias de infância ainda vagueiam por ali, pelo alto de Cimo de Vila. Naquela fonte bebi muitas vezes. No lavadouro, fecho os olhos e ainda ali vejo e ouço a tagarelar muitas das mulheres do lugar às voltas com o lavar da roupa, esfregando-a repetidamente na pedra de granito, depois de boas ensaboadelas. Nesses tempos as roupas sujavam-se do suor de cada dia, do pó da terra e do estrume dos aidos e currais, do trabalho sujo e duro. Hoje, mesmo que já poucos se sujem com o trabalho, e como são dignos os que o fazem, veste-se uma roupinha de manhã e outra à tarde. Ao fim de meia dúzia de vezes, vai para o lixo e se encaminhada para os bancos sociais poucos a aproveitam.

A roupa rompia-se dessa labuta diária e das esfregadelas pelas mãos calejadas das mulheres, mas só quando já não seguravam os remendos, as joelheiras, cotoveleiras e quadras, é que terminavam a sua função e mesmo assim ainda davam para trapos que depois de cortados em tiras eram enviados em novelos para as tecedeiras fazerem tapetes para a casa e liteiros para as camas.

Não surpreende, por isso, que do lavadouro de Cimo de Vila, sempre que por lá passe, ainda sinta o aroma de sabão e água fresca nas manhãs de segunda-feira, onde acompanhava a minha bisavó.

Por sua vez, da presa, tantas vezes acompanhava a água acabada de ser libertada pelo boeiro aberto, seguindo o rego que ladeava a parte baixa do lugar e ía regar campos pelos lugares das Quintães e do Viso. Havia tempo para fazer barquinhos de casca de pinheiro e rodízios de bogalhos.

Da água que chegava à fonte em torrente generosa, vinda da nascente do alto de Centes, o progresso aniquilou-a, aquando da construção da Auto Estrada, e, que se saiba, sem qualquer compensação. Numa solução espertalhona, desviaram para ali parte da água que vem do Monte de Mó e que também cai na fonte do Monte do Viso. Chega para todos, no Inverno, mas minguada no Verão tardio e a ter que ser dividida com parcimónia. Fossem muitos os necessitados e haveria lutas e disputas de enchadas e varapaus no ar. Mas não, anda tudo manso e acomodado aos confortos.

É certo que estes equipamentos, outrora indispensáveis às comunidades, hoje em dia andam pelas ruas da amargura ou mesmo numa via sacra, esquecidos, desmazelados e até vandalizados e são já poucos os moradores que a eles recorrem. Pela década de 1980 fizeram uns mamarrachos de betão, sem conta nem medida, sem estética nem coisa que o valha, que em nada ajudaram à mais valia do património colectivo.

Um destes dias, por lá passei e a Maria, uma das poucas utilizadores, queixou-se do estado da presa e a foto nao a desmente. Assoreada, já num misto de jardim, pântano, mato e até ninho de bicharada. Noutros tempos era valiosa porque boa regadora e vários dos consortes até pagaram para o ser. Claro que quando quando a origem da +agua da fonte e da presa foi destruída, ficaram a ver navios.

Coloca-se sempre a questão de até que ponto justifica-se gastar dinheiro público numa coisa que deixou de ter utilidade, nomeadamente por uma Junta de Freguesia, quando os próprios consortes a deixaram abandonada à sua pouca sorte, mas é um motivo de reflexão, porque há coisas que mesmo tendo perdido importância, continuam a ser marcos e testemunhas de vivência de uma comunidade, das suas raízes e identidade.

Com igual sorte da presa de Cimo de Vila, há várias outras, como a da Pereirada, a de Lamoso, estas perto de estradas, mas várias outras mais interiores, algumas quase destruídas, como a das Corgas, Sabugueiro, Monte de Mó, etc. Também os lavadouros, quase todos em má sorte, de Estôze ao Reguengo, de Cimo de Vila a Casaldaça. Alguns, como o das Quintães, ficaram pelo caminho de opções políticas discutíveis, e deles só resta a memória nos mais velhos e e nem sequer uma simples fotografia ficou como amostra.

Em suma, quando não formos capazes de valorizar certas coisas, por mais insignificantes que pareçam ser, estaremos a caminho da extinção, senão como raça, seguramente como comunidade. Já nem sequer há gente a reclamar abandonos, talvez porque o cansaço amolece ou porque o verdadeiro sentido era outro que não a genuinidade das causas e das coisas.