13 de fevereiro de 2024

Carnaval em Guisande - Outros tempos

 



Momentos de vivência do  Carnaval na freguesia de Guisande - 1960


Poderão os mais novos pensar que nos antigamentes o Carnaval passava ao lado dos guisandenses, mas naturalmente que não. É certo que sem as modernices actuais, decorrentes da contaminação de carnavais de outras paragens, mas havia alegria porventura mais genuína e popular. 

É certo que em Guisande as manifestações ligadas ao Carnaval nunca foram marcantes nem consequentes e regulares no tempo a ponto de estabelecerem uma tradição com raízes, como, de resto, nas demais freguesias vizinhas. Manifestações mais ou menos organizadas e com regularidade são raras e relativamente recentes, nomeadamente na freguesia vizinha de Caldas de S. Jorge onde o contexto turístico das termas em muito ajudou a essa dinâmica e continuidade, com mais ou menos soluços.

Apesar disso, são conhecidas e ainda lembradas pelos mais velhos algumas carnavaladas episódicas e com preponderância num ou noutro lugar da freguesia e por vezes pelo impulso de uma ou outra figura mais característica desses lugares. As fotos de cima ilustram alguns momentos de crianças e jovens com ligações às dinâmicas da paróquia.

Por exemplo, no lugar do Viso, recordo que nos meus tempos de criança e adolescente, por isso pelos idos anos de 1960 e 1970, o Carnaval marcava sempre presença e sempre com a intervenção da criançada. grosso modo, o grupo tratava com tempo de ir ao mato colher um carvalho de porte adequado, que era arrastado para a borda do Monte do Viso, próximo da escola e ali era fixado ao alto. Depois era um arrastar contínuo de lenha do mato e tudo o que pudesse arder, incluindo velhos pneus e trapos, de modo a amontoar à volta do carvalho, como se de uma árvore de Natal se tratasse. No cimo da árvore pendurava-se um grande espantalho.

Ao princípio da noite, quase sempre após o jantar, era o momento esperado, o acender do fogueirão o qual pela sua dimensão seria visto em toda a parte baixa da freguesia. A imagem acima de algum modo ilustra o que de semelhante então acontecia no lugar do Viso. Claro, escusado será dizer, que quando o dia de Carnaval calhasse num dia de chuva era um cabo dos trabalhos para fazer arder a árvore e aí recorria-se a petróleo e a lenha e moliço secos para ajudar a engrenar. 

Nessa altura do acender da fogueira os mais velhos também vinham assistir. Noutros lugares da freguesia, como Estôze e Casaldaça, também era comum o acender de fogueiras ou borralheiras. Paralelamente, as habituais brincadeiras de crianças com o uso de bisnagas de água, algumas mais sofisticadas na forma de peixe e pistola e que por esse altura se compravam como brinquedos, na quitanda das Quintães. Também, para as meninas, o atirar do pó-de-arroz e outras matreirices. Era sem dúvida um dia de brincadeiras alegres e num tempo em que as crianças brincavam na rua, muito ou totalmente ao contrário do que sucede nos tempos modernos.

Era, pois, um simbolismo genuíno, mesmo que então pouco compreendido, do queimar do tempo velho e a preparação para o tempo novo ao qual se transitava pela carestia da Quaresma, a qual por esses tempos era vivida com algum rigor, no que respeita ao respeito pelo jejum e abstinência bem como da participação nos  serviços religiosos, como a reza do Terço e a Semana de Pregações.

Carnaval dos tolos e dos outros

Ainda bem que há Carnaval. Sem psicanalistas, sem psicólogos, sem terapias, revela-nos de mão beijada os tolos, as nossas taras, manias e paranoias. Alguns não terão conserto, outros sem remédio, mas dizem que é libertador e, pelos menos, ficamos a conhecê-los. Antes folia que Xanax!

Bom Carnaval!

12 de fevereiro de 2024

Porque as árvores morrem de pé

 

Esta imagem já não é possível captar, pela simples razão de que a imponente árvore que competia em altura com a esguia e bonita torre da igreja matriz de S. Tiago de Lobão, já foi abaixo, há algum tempo, não porque morresse de pé, como todas as árvores, mas porque certamente foi decidido pelo seu abate.

Estas decisões não são fáceis para quem as toma, porque há e haverá sempre quem veja o copo meio cheio ou meio vazio. Em todas as decisões há prós e contras e encontrar equilíbrios ou decidir pelas vantagens é a parte difícil.

Neste caso, obviamente não tenho opinião, desde logo porque não sou lobonense, e por conseguinte escuso-me a opinar se foi uma boa ou má decisão, ou se inevitável. Certamente que tomaram a decisão que entenderam como justificada. Certo é que se por um lado se ganhou em desafogo no edifício e maior projecção, por outro lado também se perdeu o exemplar imponente de uma bela árvore.

Nem sei como decorreu o processo e se foi ou não pacífico entre a população. A questão aqui, de publicar esta imagem e este texto,  é mesmo só documental e ponto de partida ou chegada para uma eventual reflexão quanto ao peso e importância de certas decisões, na certeza de que, sejam quais forem, nunca serão do agrado de todos.

Neste caso, como noutros, importa saber sempre se os ganhos equilibram ou justificam as perdas, como quem diz se os meios justificam os fins. Como numa boa discussão, as respostas podem ter várias direcções e porventura todas com legítimas razões.

Ainda quanto às árvores, têm este problema e tantas vezes quando as plantamos, sobretudo perto de construções, esquecemos que crescem e dependendo das espécies podem vir a tornar-se belas e imponentes mas simultaneamente inconvenientes. Terá sido este o caso.

11 de fevereiro de 2024

Tio Neca - O simbolismo da partida

 


É meu tio, mas podia ser pai ou tio de qualquer um. A partida definitiva de alguém que tem nos seus ombros  e no seu nome o epíteto de "homem mais velho da freguesia", é e deve ser fortemente simbólica para a freguesia, para a comunidade. Afinal, de quantos compõem a comunidade, do mais velho ao mais novo bebé, todos nasceram depois dele. Por outro lado, de todos quantos nasceram antes e que conheceu, todos partiram à sua frente. Tem que haver nisto um simbolismo forte.

O tio Neca era um homem comum. Inteligente, bem disposto, de gargalhada fácil, e com boa memória até quase aos 100, capaz de recitar de cor longas lengalengas e leituras que aprendeu na escola e na tropa, e que desde que me conheço como seu sobrinho, sempre disponível para brincadeiras, nas malhas ou nas cartas. Não foi homem de grandes feitos ou aventuras. Pelo contrário, desde logo pela sua condição de solteiro, viveu sempre relativamente despreocupado, pacatamente tanto quanto possível, num dia-a-dia sem trabalho de horários e patrões, de criar e educar filhos e aturar ou ser aturado por esposa. Chegou a explorar a mercearia que na casa havia sido do pai, ali pela década de 1950, mas em tempo difícil em que o livro dos calotes andava sempre com as contas em débito, acabou por fechar. 

Ia vivendo dos rendimentos e da venda de uma boa parte do património que herdou dos pais e de muita poupança, inicialmente até em exagero, descontando para a Casa do Povo que lhe assegurou a reforma, mesmo que nos tempos no Lar já não cobrisse as despesas. 

Por si nunca foi homem de gastos, grandes ou pequenos, e não fossem os mais chegados da casa a pô-lo nos carris da normalidade, vestia sempre a mesma roupa e comia o que feito de véspera. Era apesar disso esquisito na comida e nem qualquer coisa o alegrava e com saudade e água na boca recordava amiúde a fartura na cozinha e mesa da casa dos pais, sempre abundante de broa saída a cada semana do grande forno, capoeiras cheias, salgadeiras fartas e panelas de três pernas sempre a fumegar na larga lareira com carnes de porcos de largas arrobas. 

A minha mãe e sua cunhada Eugénia compreendia-lhe os gostos e com frequência, para o desougar, preparava-lhe umas iguarias ainda com os sabores e aromas dos tempos antigos, no que se consolava mas com medida bastante porque a sua idade já não se compatibilizava com salgados e fumeiros. Para ele, ao contrário de qualquer judeu, carne de porco era sagrada, se possível salgada e fumada. Sopa, à lavrador e com muita substância, muito entulho, como dizia. Mas sim, era muito esquisito o que arreliava quem tinha a função de lhe por a comida na mesa. Por essa dificuldade em cozinhar aos seus gostos e escapar dos seus reparos, durante os últimos anos as refeições vinham da cantina do Centro Social de Lobão, mas raramente comia sem torcer o nariz e fazer cara feia à comida que classificava de branquita e desconsolada. Do muito que sobrava fartavam-se os cães e gatos.

É certo que quando vivia na companhia da sua irmã Celeste, portas meias com a de meus pais, tinha os seus momentos de alguma inquietação e mesmo arrelias, porque vivia nessa estranha condição em que lhe era simultaneamente irmão, filho ou mesmo uma espécie de marido no que tocava a orientar a casa e das necessidades do dia-a-dia. Tratava dos campos, das hortas, das podas, das regas, de algum gado, a lenha para a lareira, etc, etc. 

Mas apesar dessas singularidades de cão e gato, próprias de qualquer família, que iam das arrelias comuns, das zangas às rezas, era senhor do seu destino e por isso nunca se "matou" de trabalho. De resto, a morte na sua fatal tarefa só o procurou  agora, bem tarde, uns meses depois de ter soprado as velas do bolo do centésimo aniversário. 

Depois da partida da sua irmã acabou por ter que deixar, com natural tristeza, a parte da casa que durante muitos anos partilhou e teve como sua, mas encontrou abrigo na mesma casa, na parte de meus pais e amparado e cuidado pela minha mãe e sobretudo pelo seu sobrinho Adérito, em larga medida que  lhe foi como um filho, ali esteve independente, à sua vontade, uns bons anos até que já em tempo de pandemia e depois de um episódio que o levou de urgência ao hospital, acabou por ser encaminhado pelos serviços para o lar Hospital da Santa Casa da Misericórdia em Arouca onde esteve durante quase três anos, bem acompanhado, cuidado e com visitas regulares. Pode-se dizer que nada lhe faltou também pela sua condição de saúde sem grandes problemas e esteve sempre relativamente bem, apenas com alguma perda de mobilidade o que se compreende com a idade avançada.

A caminho dos 101 anos acabou por encontrar o seu destino. Uma infecção respiratória, que tem levado muita gente, até a um nada habitual excesso de mortalidade face à média, mas a verdade é que também foi. Estava, apesar de tudo, já a melhorar, mas foi, até com alguma surpresa dos médicos e cuidadores.

Está, pois, no lugar que acreditava que estaria, ao lado dos seus, dos avôs, dos pais e de quase todos os irmãos, ficando ainda a mais nova, a Laurinda, mas também esta já a caminho dos 100, bem cuidada pelas filhas mas já privada da memória e do conhecimento.

A vida é assim e a partida é uma fatalidade que a todos chega, em diferentes tempos e modos mas como diz o povo na sua sabedoria milenar, e de resto óbvia, "quem de novo não vai, de velho não escapa".

No resto, foi-se esse simbolismo do mais velho de todos e alguém certamente fica no seu lugar e será sempre assim nesta roda da vida no seu movimento perpétuo. Vai a sepultar na próxima Quarta-Feira, dia de cinzas, no que aumenta o simbolismo e significado da nossa condição de pó que como tal à terra há-de voltar.

Que Deus o tenha em descanso eterno e em paz!

Gente de ontem e ainda de hoje

 


Fotografia de Julho do ano de 1957, por isso já com quase 67 anos.

1 - Manuel Pinto dos Santos (regedor)

2 - Roberto Pereira da Silva (pai do Pe. Agostinho)

3 - Manuel Pereira dos Santos (Ti Pereira)

4 - Domingos Caetano de Azevedo

5 - Dr. Joaquim Inácio da Costa e Silva

6 - Manuel Gomes de Oliveira (pai do Pe. Francisco)

7 - Domingos "do Sebastião"

8 - António Alves Santiago

9 - Pe. Santos Silva (que foi pároco do Vale)

10- Dr. António Ferreira de Sá (da Casa do Loureiro)

11- Helena, irmã do Pe. Francisco

12 - Elisa, irmã do Pe. Francisco

13 - Prof. Célia Azevedo

14 - Pe. Francisco Gomes de Oliveira

Entre  as irmãs Maria e Elisa parece-me ser a Ti  Madalena, esposa do Ti Pereira do Viso.

O sacerdote entre o Domingos Azevedo e o Dr. Joaquim Inácio, ainda não consegui identificar.

Dos identificados, um ou outro ainda com dúvidas mas que alguém poderá ajudar a melhor identificar.

Nota de falecimento - Manuel Joaquim Gomes de Almeida

 


Faleceu Manuel Joaquim Gomes de Almeida (Ti Neca do Viso), meu tio paterno. Era o homem mais velho da nossa freguesia e tinha completado um centenário de vida em Outubro passado. Estava, pois, a caminho dos 101 anos.

Filho de Joaquim Gomes de Almeida e de Maria da Luz. Neto paterno de Raimundo Gomes de Almeida e de Delfina Gomes de Oliveira. Neto materno de José Joaquim Gomes de Almeida e de Maria da Conceição de Jesus.

Encontrava-se desde há algum tempo no Lar da Santa Casa da Misericórdia em Arouca, bem cuidado, e estava relativamente sempre bem disposto apesar das falhas de memória. Nos últimos dias teve uma infecção respiratória e apesar de já estar em melhoras acabou por não resistir. 

Deus deu-lhe a graça de uma vida longa e relativamente saudável pelo que temos que Lhe dar louvor.

Paz à sua alma! Que descanse em paz!

Sentidos sentimentos aos seus demais familiares,  de modo particular a quem com ele desde há vários anos lhe dedicou apoio e companhia constantes, no caso o seu sobrinho Adérito, como se filho fora, bem como a sua esposa Madalena, e à minha mãe Eugénia, que depois do falecimento da Tia Celeste, com quem até então vivia, o acolheu, tratou e apoiou. 

De irmãos ainda deixa por cá a Tia Laurinda, também já a caminho dos 100.

Ainda não há pormenores das cerimónias fúnebres, sendo aqui divulgadas logo que conhecidas.


Actualização: Funeral na Quarta-Feira, 14 de Fevereiro de 2024, pelas 11.30 horas na igreja matriz de Guisande indo no final a sepultar em jazigo de família.

Missa de 7.º Dia no Sábado, 17 de Fevereiro, pelas 17:30 horas na igreja de Guisande.

9 de fevereiro de 2024

Vazio


Na minha aldeia havia uma escola

Que se enchia de crianças

Aprendendo a escrever, 

A ler,  a juntar letras

Numa descoberta de saber,

A contar, a fazer contas,

A somar esperanças,

A subtrair a ignorância,

A dividir amanhãs com mais sol.

A imaginar histórias, 

Contadas e pintadas.

Diziam a uma voz as tabuadas

Como na igreja a rezar avé-marias.

O recreio era todo folguedos,

Corridas, trotes e galopes,

Jogos, brincadeiras,

Um palco de heróis fingidos,

Nas aventuras duras e reais.

Eram assim os dias, 

A encher as cabeças de ensinamentos

Como de água os cantis, os caminhantes

Antes de atravessar desertos.


Mas os tempos trouxeram a mudança

Como o vento de sul a anunciar chuva.

Foram saindo e crescendo,

Fazendo-se homens e mulheres,

Pedras duras do edifício da vida.

Mas num renovar minguado,

Na velha escola as algazarras

Foram perdendo fulgor e voz

E os companheiros mais solitários.


Um dia, por fim, o fim.

Alguém anunciou

Que não já não havia crianças.

A escola fechou, emudeceu.

Os ecos das leituras,

O cheiro dos lápis de cor,

Deixaram-se de se ouvir

E perderam o aroma.


Na minha aldeia

A escola já não é ela

Mas ainda lá está, triste,

Arrumada noutros ofícios,

Mas ainda a guardar memórias e ecos.

Na minha aldeia os caminhos

Já não fervilham de labuta

Pelo pão de cada dia.

Os campos já não dão pão,

E as águas são lágrimas perdidas.

Muitos partiram ou morreram,

Todos envelheceram.


É agora, a aldeia, um  triste casario, 

Quase sem gente dentro,

Sem vizinhos, 

Bons dias ou boas noites,

Como um crepúsculo permanente 

Onde a noite espera para a amortalhar

E a foice o resto ceifar

Deixando um restolho de nada,

O vazio.